Funcionários relatam sentir ‘presenças’ e ver almas penadas em prédios históricos da cidade
História de bruxa do Arco do Teles segue viva; Biblioteca Nacional e Palácio Tiradentes são dois dos locais que acumulam lendas
Biblioteca Nacional: vulto foi visto por estagiárias em divisão de obras raras - Fernando Lemos
RIO - Primeiro, vieram a rainha louca, o príncipe regente, gente da Corte. Os livros da Bibliotheca Real, acervo de Dom João VI, cruzaram o oceano só depois. Já os fantasmas, estes ninguém sabe quando chegaram. Mas para muitos eles estão lá, a assombrar os vivos com seu arrastar de correntes, portas batidas, livros derrubados e gemidos.
A Biblioteca Nacional (BN), juram alguns, recebe visitas de quem deveria estar descansando na terra dos pés juntos. E não é o único lugar assombrado por almas penadas no Rio. Em outros prédios clássicos da cidade, também há relatos de gente que viu, ouviu ou sentiu coisas do além. São histórias de almas anônimas, como escravos a lamentar o cativeiro, e de vultos notórios, como Dona Leopoldina, primeira imperatriz do Brasil.
— Quando ouço barulhos estranhos, nunca pergunto se é alguém. Vai que alguém responde — diz Anna Virgínia Pinheiro, chefe da Divisão de Obras Raras da BN. — Temos livros que foram responsáveis pela morte de pessoas, seja porque os escreveram, leram ou possuíram. Temos casos de livros sobre satanismo, bruxaria, sobre o martírio de pessoas, técnicas de tortura... Todo tipo de literatura nefasta. Sem dúvida há uma energia aqui.
Em 1890, durantes obras, esqueleto humano foi encontrado no Paço Imperial - Fernando Lemos
Os livros que assombram os funcionários da biblioteca são obras malditas. Na seção batizada de “cemitério”, ficam volumes que, às vezes por medo, não foram restaurados, como uma edição de 1614 do “Malleus maleficarum”, ou “Martelo das feiticeiras” — manual da inquisição para a caça às bruxas que levou muita gente à fogueira. Uma outra obra, “De idololatria magica, dissertatio”, sobre demonologia, traz uma anotação na folha de rosto: “Este livro não poderá ser possuído.”
Anna Virgínia conta que não é incomum abrir livros assim, que ficaram fechados por séculos, e encontrar fios de cabelo do antigo dono, morto há muito tempo (não custa lembrar que, há alguns anos, pelos pubianos de Dom Pedro I foram achados numa carta à Marquesa de Santos). Ano passado, três estagiárias viram um vulto entre as estantes. Elas estavam em pontos diferentes da seção.
— A sensação é de que pessoas vêm reclamar sua parte na História. Nunca sabemos se são do mal ou do bem, mas elas estão aí — brinca Anna Virgínia.
Uma das lendas que se espalhou no boca a boca pela biblioteca tem como personagem um professor que um dia, enquanto estudava um manuscrito, teria gritado “Meu Deus!”. O caso foi registrado pelo historiador Gilberto Vilar de Carvalho na biografia que escreveu sobre a BN. Dizem que o homem ainda continuou: “Não é possível! Logo ela!” O professor nunca mais foi o mesmo, segundo consta, e passou a se assustar com qualquer coisa. Sem revelar a tão exclamativa descoberta, simplesmente sumiu. Não se sabe se morreu; vivo, ninguém mais o viu. Mas, se morreu, não partiu para uma melhor. Por anos, contou-se que seu espírito era visto subindo as escadas e entrando na Divisão de Manuscritos.
No Paço Imperial, uma história clássica — e comprovada — entrou para o anedotário do edifício. Em 1890, com a República recém-proclamada, um esqueleto foi encontrado durante obras no prédio. Os primeiros boatos diziam que ele estava “emparedado” — um crime que podia cair nas costas da monarquia. Depois, falou-se que foi encontrado enterrado, num caixão. A imprensa publicou dezenas de notícias e folhetins sobre o caso. O folclore até hoje dá medo.
A vizinhança do Paço, aliás, é bem mal-assombrada. Ali ao lado, no Palácio Tiradentes, almas do além arrepiam pessoas do aquém. Onde hoje é o edifício da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (Alerj), ficava o antigo parlamento — no subsolo, havia uma cadeia, na qual Tiradentes ficou por três anos, antes de ser enforcado.
— Este prédio de noite deve virar aquele clipe de “Thriller”, do Michael Jackson! — imagina o deputado Átila Nunes (PSL), que é espírita. — Eu tenho um convívio muito bom com o mundo espiritual, até por convicção. Às vezes sinto uma energia muito boa ou muito ruim, especialmente no plenário. Mas o negócio aqui é sério. Seria páreo duro escolher entre passar a noite num cemitério ou na Assembleia Legislativa. Com o plenário semiapagado, é como se aqueles nomes antigos, como Ruy Barbosa, saíssem das pinturas.
Na Alerj, o segurança Luiz Carlos Martins, o Carlão, até hoje lembra-se de uma noite em especial, num fim de semana. Enquanto fazia a ronda, começou a ouvir uma pessoa tentando forçar os portões. Quando foi ver, era um homem barbudo, com cabelo grande, de bermuda e sandálias. Carlão perguntou o que ele queria e ouviu como resposta: “Eu vivi aqui dentro, tem uns livros que preciso pegar. O senhor pode abrir as correntes?” O segurança mandou o sujeito voltar na segunda-feira, deu passos para ir embora, quando o homem desapareceu. Carlão acredita que se tratava do próprio Tiradentes:
— Tem uma presença aqui. Uma vez eu estava no primeiro andar e via as luzes acendendo e apagando lá em cima. E sentia que tinha alguém lá.
Na calada da noite, os seguranças da Alerj dizem ouvir gritos, sussurros e gemidos, além do arrastar de correntes. Quando fazem a ronda, têm a impressão de que são observados por alguém — isso quando não sentem uma presença que passa caminhando ao lado deles. O próprio Carlão acredita que políticos do passado ainda realizam sessões no plenário:
— Uma vez, eu estava quase cochilando no plenário, no escuro, quando comecei a ouvir uma gritaria. De noite, as almas fazem sessão aqui. Falei até para um deputado que é da igreja fazer uma sessão para liberá-las.
História de Bárbara dos Prazeres, bruxa do Arco do Teles, continua viva - Fernando Lemos
O Centro é fértil em relatos de assombrações. João do Rio registrou as histórias de cartomantes e cultos satânicos em seu “As religiões no Rio”, no qual escreveu: “O Rio de Janeiro é uma tenda de feiticeiros brancos e negros, de religiões de animais, de pedras animadas.” No Morro do Castelo, o escritor conheceu o famoso Frei Piazza, exorcista que jurava ter expulsado o demônio de mais de 300 possessos.
Nos arredores do Arco do Teles, a história de uma bruxa resiste à passagem do tempo. Bárbara dos Prazeres era uma prostituta que fazia sucesso no local, no século XVIII (em 1889, o “Diario do Commercio’’ ainda publicava artigos sobre a lenda). Quando começou a ficar velha, descobriu com uma feiticeira uma poção da juventude — cujo principal ingrediente era sangue humano, especialmente de crianças. Então, bebês começaram a sumir. Diz o enredo que a bruxa ainda se banhava com o sangue deles em sua casa na Cidade Nova. Virou uma criminosa notória, até que um dia desapareceu. Um corpo, encontrado no cais ali perto, foi identificado como sendo dela — mas muitos acreditavam que, graças à poção, Bárbara continuou a assombrar a região.
— Depois que soube dessa história, fiquei com medo. Dizem que ela aparece aqui para aliciar os homens. Se duvidar, eu até já peguei essa mulher! — diz Ramon Vieira, segurança do prédio do Ibama, ali ao lado, onde ele jura que elevadores são acionados de madrugada, mesmo sem nenhum funcionário no local.
Os relatos se estendem para a Rua do Ouvidor, ali perto. Toninho, dono do bar batizado com seu nome, que trabalha ali há 36 anos, conta que bêbados em seu boteco já tiveram visões, independentemente do grau etílico. Alguns já disseram ter visto escravos na porta do próprio bar, aparições que o proprietário garante nunca ter presenciado — mas afirma que medo não sentiria se as visse.
— Eu não tenho medo, sou esotérico. Se aparecer, eu converso. Para tudo há um diálogo. Fico até arrepiado de falar — diz Toninho, apontando os pelos do antebraço com o indicador. — Frequentei a Irmandade Espiritualista Verdade Eterna, onde estudamos as religiões, aprendemos a nos proteger. Quando havia o mercado do peixe aqui, os pescadores também contavam muita história de assombração.
Também há vultos de sangue azul vagando pelo Rio de Janeiro. Na Quinta da Boa Vista, no Museu Nacional, antiga residência da família imperial, Dona Leopoldina é uma das que atormentam os vivos. Ela morreu jovem, deprimida com as traições do marido, que um dia a teria empurrado de uma escada, humilhando a imperatriz na frente da rival, a Marquesa de Santos. Leopoldina foi vista pelo menos duas vezes: uma, circulando pelos corredores; outra, acendendo e apagando luzes de uma sala.
A alma da imperatriz fez a historiadora Regina Dantas mudar sua tese de mestrado, em 1998. Numa noite, depois de horas de pesquisa no museu, ela conta ter visto um vulto de vestido branco, que olhava para trás e que desapareceu ao dobrar um corredor. Ela “intuiu” ser Leopoldina. Regina, que estudava a mania de coleções de Dom Pedro II, resolveu mudar e passou a estudar a mãe do imperador.
O mesmo ano de 1998 registra outro relato “iluminado’’: um vigilante subiu para desligar as luzes do terceiro andar e, quando desceu, elas estavam novamente acesas. Na janela, uma silhueta o observava. Ele ainda apagou as luzes outras duas vezes — e duas vezes elas foram reacesas. O homem precisou recorrer aos disjuntores para sossegar a imperatriz.
O filho de imperatriz, Dom Pedro II é outro que faz barulhos, derruba livros, bate portas — pelo menos é o que se fala dele. Quando fica tarde e os fenômenos acontecem, já é comum dizer que “o Pedrinho” está mandando os funcionários do museu embora.
A coleção de relíquias egípcias, que inclui múmias compradas em 1826 por Pedro I, também tem lá seus fantasmas. Nos anos 1940, ficaram famosas as experiências parapsicológicas do egiptólogo russo Victor Staviarski. Ele levava médiuns para visitar as múmias. Na presença de uma delas, Kherima, não era incomum pessoas entrarem em transe, terem visões do Antigo Egito. O professor também teria realizado gravações de áudio na presença dela, registrando vozes do além — mas ninguém sabe onde estão essas fitas.
Que tal a história de um castelo mal-assombrado em plena Avenida Brasil? Pois o edifício da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) é cenário de aparições misteriosas. Semana passada, fez sucesso na página da instituição no Facebook um post sobre as almas penadas do local.
— Quando eu trabalhava de plantonista, vi um homem de jaleco branco passando dentro de um ambulatório. Perguntei ao porteiro se alguém tinha pegado a chave para entrar lá, mas não havia ninguém — lembra Claudia Andrade, recepcionista da Fiocruz. — Quando vou embora, também sinto que há alguma coisa me observando no matagal. Mas não chamo, não tento me comunicar. Não gosto muito.
Alguns espíritos são educados. Fernando Silva, segurança, um dia foi informado que só poderia fazer a ronda depois que todos os funcionários já tivessem saído. Às 23h40m, castelo completamente vazio, ronda feita, enquanto ele lia uma revista no sofá da recepção, uma moça passou e lhe disse um “Boa noite, senhor”. Fernando respondeu. Só depois se deu conta de que ela não “poderia ser deste mundo’’:
— Foi impressionante, ela me deu tchau!
Os vultos históricos inspiraram o historiador Clóvis Bulcão e a jornalista Vivi Fernandes. Os dois trabalham num documentário sobre esse tipo de aparição — aproveitando as lendas para contar a história do Brasil. Além de Leopoldina, já ouviram um caso da Escola Naval, atrás do Aeroporto Santos Dumont: o espírito de Villegagnon, que liderou a tentativa francesa de colonizar o Rio, no século XVI, ainda se manifestaria. Naquela área, que recebe o nome de Ilha de Villegagnon, o francês construiu seu forte — derrubado pelos portugueses depois de derrotá-lo.
— Ele era muito duro. Era um sujeito muito autoritário e violento — conta Clóvis Bulcão.
Em São João de Meriti, os sustos ficam por conta do Morro do Embaixador, onde está prevista a construção do Museu João Cândido, em homenagem ao líder da Revolta da Chibata. Até dois anos atrás, o terreno ainda tinha a casa que pertenceu ao embaixador português Martinho Nobre de Melo, construída no século XIX. Antes disso, foi uma fazenda escravocrata de cana e laranja. Hoje, é uma área dominada pelo tráfico.
— Muita gente diz que ouve grilhões e choro dos escravos na senzala. Quando eu era criança, morava ali embaixo. Já vimos uma sombra na janela. À noite, ninguém ia lá. Tínhamos pavor — diz o carnavalesco Ricardo Paulino, da escola de samba Chatuba de Mesquita, do Grupo de Acesso D.
Fundação Oswaldo Cruz relatou histórias de assombrações em sua página no Facebook - Fernando Lemos
O sobrenatural interessa a pesquisadores acima de qualquer suspeita de credulidade. Caso da historiadora Mary Del Priore, que estudou o assunto e, no ano passado, lançou “Do outro lado — A história do sobrenatural e do espiritismo” (Editora Planeta):
— As assombrações refletem nossa visão da morte, um tema que precisa ser estudado. Acredita-se que é preciso cuidar do morto, porque ele volta para assustar ou ajudar. Às vezes traz lembranças do sofrimento. Era comum que senhores rezassem missas para os escravos. O escravo que foi maltratado volta com o barulho dos grilhões. O Rio sempre teve uma cidade visível e outra invisível.
Leia mais sobre esse assunto em http://oglobo.globo.com/rio/funcionarios-relatam-sentir-presencas-ver-almas-penadas-em-predios-historicos-da-cidade-16430628#ixzz3dF6wvDkW
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