A Revolução será feminista
Se há um Brasil que caminha célere para as trevas, é ali mesmo onde há cinzas que os movimentos feministas atuam, resistem, existem. É nesse sentido que se pode tomar a política feminista como a mais forte manifestação ao contra-ataque conservador que tem varrido a política brasileira
2017, o ano das bruxas em ação
Era o dia seguinte ao 8 de Março de 2017 e à greve geral convocada pelas mulheres contra o atual governo, cuja crise institucional se arrasta desde a retirada da presidenta Dilma Rousseff da Presidência da República. Caminhava por uma calçada estreita no centro do Rio de Janeiro quando cruzaram comigo dois homens. De um deles ouvi, enquanto passava por mim: “Mas essas mulheres têm de sair da rua, essas mulheres estão fazendo muito barulho”. A adversativa com que a frase parecia começar indicava uma contrariedade, quase um desgosto. Agora, que aos homens que usurparam o poder parecia haver alguma chance de fazer as tais reformas exigidas pela abstrata entidade chamada mercado, enfim havia aparecido no radar político daquele executivo a incômoda categoria “mulheres que protestam”.
De debacle em debacle, o governo Temer chega a 2018 – que legalmente deve ser seu último ano – sem ter começado, em que pesem os sucessivos golpes que se seguiram, seja na universidade, nas leis trabalhistas, na política de saúde mental, nas artes e na cultura. Mas – e repito a adversativa como provocação – a ação das mulheres na política nunca esteve tão em evidência. Se fosse para escolher uma única imagem para representar 2017, apontaria para a que mais parece nos ofender: uma bruxa sendo queimada, uma enorme boneca de pano mimetizando a filósofa feminista Judith Butler no tribunal da Inquisição.
Se há um Brasil que caminha célere para as trevas, é ali mesmo onde há cinzas que, a cada vez, os movimentos feministas atuam, resistem, existem. É nesse sentido que se pode tomar a política feminista como a mais forte manifestação ao contra-ataque conservador que tem varrido a política brasileira. Em grande medida, porque as mulheres são o alvo mais frágil ao ataque, mas ali mesmo onde seria a nossa maior fraqueza estamos também na ponta mais forte de resistência. Para isso, é preciso pensar a política como um jogo de forças ativas e reativas, uma relação dialética entre avanços e recuos, em que cada passo adiante ameaça e, portanto, provoca novas violências. Nesse ir e vir, no fluxo e no refluxo das forças, justifica-se a contabilidade dos movimentos feministas em ondas.1
Há uma grande controvérsia sobre essa divisão. Embora a estratégia esteja estabelecida como forma de marcar os momentos de maior intensidade das lutas pela emancipação das mulheres, o fato é que, se tomarmos a onda como uma metáfora, correremos sempre o risco de estar começando de novo, porque as ondas varrem do solo as marcas do passado. Haveria ainda uma interpretação pior: “isso é onda”, forma jocosa de se referir à política feminista como aquilo que, por só interessar às mulheres, não teria nenhuma importância no cenário de disputa de poder nacional e internacional. Minha hipótese é oposta e parte do princípio de que fazer política feminista tem sido, em todas essas ondas históricas, trazer ao debate público os temas mais candentes para a sociedade. E justamente por isso as forças conservadoras insistem em nos dizer que “estamos fazendo muito barulho”, porque estamos afirmando que os problemas de gênero não são meras questões regionais, muito ao contrário, são o ponto central a partir do qual se pode colocar em pauta o interesse comum.
A cada reivindicação dos feminismos, em geral empurrada para escanteio como uma demanda específica, equivale uma pauta global, o que me permite defender que a luta contra a opressão das mulheres é a própria luta contra a opressão. Tomo em defesa da minha hipótese a expansão dos feminismos negros como o melhor exemplo: a estrutura racista do Estado brasileiro é fundante na desigualdade entre pessoas brancas e pessoas negras, então é fundamental denunciar, confrontar e enfrentar o racismo presente nas relações sociais. Não é outra coisa o que as mulheres negras estão fazendo nas ruas, nas marchas nacionais, na Marcha do Orgulho Crespo, exibindo seus cabelos rebeldes aos processos de embranquecimento que são marca da violência histórica do Estado brasileiro contra o corpo das pessoas negras.
O filósofo Michel Foucault afirma que o Estado só consegue garantir sua função de assassino se funcionar, “no modo do biopoder, pelo racismo”. O que ele definiu como biopoder é forma política de controle sobre os corpos, controle que, do meu ponto de vista, se dá preferencialmente sobre os corpos marcados pela subalternidade, ou, para falar como Michelle Perrot, sobre os excluídos da história: operários, mulheres e prisioneiros. Por isso, faz sentido pensar que o corpo das mulheres é o alvo preferencial do biopoder, do constrangimento de suas ações e liberdade. Se é verdade que as mulheres são o primeiro alvo do biopoder, pode ser verdade também que os feminismos são a constituição histórica da resistência a esse controle estatal sobre os corpos. Nas quatro grandes ondas da história dos movimentos feministas, a liberdade do corpo contra a opressão do Estado é centro da disputa.
Foi assim na Revolução Francesa, quando as mulheres denunciaram que o corpo feminino estava excluído da concepção de universalidade; foi assim quando as sufragistas lutaram para ter seu corpo contado como eleitoras e, com isso, aprimoraram os sistemas de representação democrática; tem sido assim desde a segunda metade do século XX, quando a segunda onda feminista se levantou contra a violência exercida sobre o corpo das mulheres e a terceira onda permitiu perceber que a violência é contra todo corpo que carregue a marca da feminilidade, sobremarcada por raça, classe, religião, lugar de moradia e/ou nascimento, idade, sexualidade, idioma e uma infinidade de indicadores que reforçam as estratégias do biopoder e da violência.
Para falar da quarta onda feminista, retomo a primeira Marcha das Vadias, realizada em 2011 no Canadá e em diversos outros países que imediatamente aderiram, inclusive o Brasil.2 Foi puxada por jovens estudantes canadenses que, diante da reivindicação de atuação policial contra os estupros ocorridos em torno do campus da universidade, ouviram do chefe de polícia: “Se não querem ser estupradas, não saiam na rua vestidas como vadias”. As mulheres se mobilizaram valendo-se da estratégia que o movimento queer já havia adotado: subverter o termo “vadia” de sua conotação negativa para usá-lo de forma debochada contra a violência que ele pretende perpetrar. A participação do movimento de legalização da prostituição foi importante para reforçar a pauta da descriminalização da profissão, numa dinâmica muito própria dos feminismos brasileiros: a articulação entre as reivindicações globais e os itens do debate local.
A resposta do policial de Toronto é apenas a face mais evidente da opressão sobre o corpo da mulher, que deve ser mantido sob controle, enquanto o do homem pode e deve gozar do imperativo da liberdade absoluta. Contra essa forma estrutural de violência, manifesta em diferentes fenômenos, uma nova geração de mulheres começou a retomar as ruas, inúmeros coletivos de jovens feministas se organizaram, inclusive nas universidades e escolas públicas de ensino médio, como tão bem mostra o documentário Primavera das mulheres, de Antonia Pellegrino.3 Era setembro de 2015 quando manifestações ocuparam ruas, praças e redes sociais para pedir, no grito de #ForaCunha, a queda do presidente da Câmara que, naquele momento, além de autor do Projeto de Lei n. 5.069 – que volta a exigir boletim de ocorrência para o atendimento, na rede pública, das mulheres vítimas de estupro que desejem realizar o aborto legal –, era um dos mentores do golpe que viria a derrubar, poucos meses depois, a presidenta Dilma.
O PL de Cunha era apenas um sinal de como os retrocessos na política apontavam para o corpo das mulheres em primeiro lugar. Em dezembro de 2017, foi a vez da PEC 181, cujo objetivo original era ampliar o direito à licença-maternidade em casos de nascimento de bebês prematuros. Depois, foi transformada num projeto que visa à proibição do aborto em casos já autorizados por lei, como estupro, anencefalia fetal e risco de morte para a mãe. Na contraofensiva, um grupo de organizações feministas organizou um manifesto público no qual 270 mulheres, inclusive eu, declararam já ter realizado aborto e apoiaram a decisão da jovem Rebeca Mendes, cujo recurso ao STF pedindo autorização para interrupção de gravidez foi negado.
Se a imagem de uma bruxa sendo queimada na porta do Sesc Pompeia é exemplar de um ano poderoso, vale evocar também a publicação de Calibã e a bruxa – Mulheres, corpo e acumulação primitiva, livro da feminista italiana Silvia Federici que conta a história do capitalismo como uma história de guerra contra as mulheres e a história da resistência das mulheres nas Américas como as “principais inimigas do domínio colonial”. Não é por outra razão que as teorias feministas no Brasil se colocam, há tempos, o problema da importação da bibliografia feminista e a importância de afirmar nossos saberes localizados, para falar como Donna Haraway.
O campo acadêmico feminista começou a se constituir no Brasil no final do século XIX graças a uma dupla estratégia: a validação dos argumentos pela emancipação da mulher com base na importação de pensadoras europeias – com destaque para o trabalho da educadora Nísia da Floresta, tradutora da inglesa Mary Woolstonecraft no Brasil – e a inclusão de pautas locais, como o fim da proibição do ensino para mulheres. Essa disjuntiva permanece estratégica até hoje. Receber a filósofa Judith Butler no Brasil foi uma oportunidade de dimensionar a importância que tem hoje o pensamento político feminista, ameaçador a ponto de mobilizar tantas forças reacionárias ao mesmo tempo.
Nos anos 1980, a norte-americana Susan Faludi identificou os discursos conservadores que insistiam na tese de que as feministas já teriam conseguido todas as conquistas de que precisavam e, pior, estavam infelizes com o ponto aonde haviam chegado. Segundo eles, estava na hora de recuar. Dentro dos movimentos feministas, no entanto, a questão era oposta: como ampliar as lutas? O sopro de vigor e resistência veio com a publicação, em 1989, de Gender Trouble [Problemas de gênero], livro que marca a entrada de Butler no campo da teoria feminista. Inspirada principalmente pelos trabalhos das feministas Gayle Rubin e Monique Wittig, Butler trava um debate com a filosofia existencialista de Simone de Beauvoir a fim de interrogar o que ela chama de ligação natural entre sexo e gênero. Afinal, se não se nasce mulher, torna-se mulher, em que estaria fundamentada a ligação entre um corpo de fêmea e a construção de uma pessoa do gênero feminino?
Nesse momento, a terceira onda feminista se dobrou sobre si mesma, seguindo a proposta de Butler de que o feminismo deixasse de ser feito apenas em nome do sujeito mulher, e de sua provocação surgiram novos sujeitos e a oportunidade de ampliação dos feminismos para além dos direitos das mulheres, mais uma vez sobrepondo a luta contra a opressão das mulheres à luta contra toda forma de opressão. Universal e particular ao mesmo tempo, paradoxal como provocação, agonística como método.
Foi mais ou menos assim que as mulheres voltaram a ser as bruxas da história, aquelas que não se calam diante das opressões e injustiças, as que são queimadas e mortas – seja como metáfora, seja no alto índice de feminicídios no país – por denunciarem que, sem nem mesmo termos chegado a algo que pudéssemos chamar de Estado de bem-estar social, já estamos em furioso processo de desmonte do pouco que havíamos alcançado.
*Carla Rodrigues é filósofa, professora de Filosofia (UFRJ) e pesquisadora (PPGF/Faperj)
Fonte: diplomatique.org.br
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